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13.7.07

Road Book em Alta Velocidade

LITERATURA

Quem vê apenas a capa estilizada com o desenho de uma perfeita road norte-americana e título de A mil por hora: confissões de Speed Queen (Record, 2006, 272 págs.), de Stewart O'Nan, logo lembra dos romances de Nick Hornby, autor de Alta fidelidade. Portanto, não é nada surpreendente que encontremos uma crítica positiva do denominado autor nesta própria capa, caracterizando o romance como “extraordinário, envolvente, estranho, engraçado, violento e excitante”.

E, realmente, a palavra envolvente se encaixa muito bem no título, cujo original é de 2001. Dedicado a Joey Ramone, o livro teve sua primeira tradução no Brasil no ano passado, pela Record. Em ritmo de thriller e por meio de linguagem informal, acompanhamos as confissões de Speed Queen, apelido que os jornais dão a uma jovem que participa do assassinato de 12 pessoas em uma pequena lanchonete nos Estados Unidos central, cenário ideal para a velha fantasia americana composta por sexo, drogas e rock'n'roll. O romance é dividido apenas por dois capítulos: o Lado A e Lado B da fita que Speed enviará a um escritor que, pelas menções a O iluminado, logo descobrimos ser Stephen King. Aliás, o titulo original do livro era Caro Stephen King, mas O'Nan optou por deixar este fato nas entrelinhas.

Speed é o nome de uma droga cujo similar por aqui parece ser a “bala”: objeto de adoração do casal de protagonistas, ela “acelera”, assim como o Roadrunner, carro que acaba tendo papel central no livro, pois também é símbolo-mor da fantasia na qual vivem. É nele que Speed presta atenção quando conhece o traficante Lamont, com quem começa um relacionamento que muda sua vida de funcionária entediada de um posto de gasolina localizado em uma pequena cidade. O rock fica por conta das citações a Jimi Hendrix, trilha-sonora do romance. E o sexo é a base para a tragédia, impulsionada pela criação de um triângulo amoroso com Natalie, mulher manipuladora que termina por virar do avesso a vida do casal.

Stewart O'Nan nasceu em 1961 e faz parte da nova geração da literatura norte-americana. Sua formação é, acreditem, engenheiro, mas, em uma hilária linha do tempo em seu site, logo descobrimos por que ele se tornou escritor: filmes de horror aos 12, Stephen King aos 16, literatura beat aos 19 e Camus aos 20. Resultado: dez livros de ficção, entre eles Queria que você estivesse aqui, recentemente também traduzido pela Record. O título não lembra Pink Floyd? Sim, O'Nan é cool e jovial mesmo quando trata de temas mais sérios, como a história de uma família que se reúne em uma casa na beira de um lago para relembrar o passado e olhar para o futuro. Além de romances premiados como A prayer for the dying e In the walled city, o escritor também produziu alguns trabalhos de não-ficção, inclusive um em parceria com Stephen King: Faithfull, no qual ambos compartilham sua paixão pelo beisebol, título que se tornou um best-seller do New York Times.

É inevitável a comparação do livro com o filme Assassinos por natureza (1994) ou mesmo com qualquer roteiro cinematográfico: seu texto inspira imagens com cores fortes e fotografia alucinante. Talvez visando atingir um maior número de jovens leitores, O'Nan realmente tenha pensado no desdobramento do livro na telona e na influência que o cinema tem nas novas gerações. Prova disto é que Snow angels, ainda não publicado no Brasil, será levado à telona este ano, do mesmo modo que The Speed Queen, que contará com o roteiro e atuação de Christina Ricci. A própria Speed cita diversos filmes em sua confissão, afirmando que o livro que contará sua história é uma mistura de À espera de um milagre (1999) e Eclipse total (1995), que, adivinhem, é uma história baseada em um romance do próprio Stephen King. Mas fica a cutucada do autor de que foi também o próprio cinema que impulsionou Speed Queen a viver esta fantasia, em certo sentido tragicômica. Aliás, o que o livro tem bastante é humor, mesmo que negro.

Mas há uma realidade cética e paralela criada pelo autor nesta fantasia clichê e é aí que reside a criatividade do livro. Ao longo de sua própria confissão, muito bem amarrada, cheia de voltas e retornos ao passado para culminar no ápice dos assassinatos, a protagonista vai verificando que sua vida e paixão por Lamont teve limites bem palpáveis: seu pequeno filho e uma sociedade que não dá espaço para uma vida acelerada. Até mesmo esta vida tem seus momentos de realidade. E, além disso, que toda violência tem um final muito pouco glamoroso: a pena de morte e sua injeção letal.

Além desta realidade por trás das motivações dos assassinatos, há a crítica velada ao ato de criar um romance sobre assassinos. Como leiga, a voz da narradora dá liberdade para questionamentos que o escritor vai destilando sobre o que compõe uma ficção: o que é verdade e mentira, quais fatos devem ser valorizados etc. Natalie, também condenada à pena de morte, escreve antes de sua condenação um livro de memórias que, segundo Speed Queen, deturpa muitos fatos. Mais um porquê que a impulsiona a escrever para seu escritor preferido, certa de que ele saberá contar uma boa história. Mas a jogada de O'Nan é que, para uma boa história, bastou sua própria confissão, uma dica de que a vida talvez seja muito rica e que os escritores apenas têm de dar voz a suas próprias criações.

Marília Almeida

*publicado no Digestivo Cultural

22.4.07

Panorama Literário 2006

LITERATURA

2006 para a literatura foi sinônimo de eventos consolidados sem muitas novidades, como Flip e Bienal do Livro. Também foi um ano de diversos lançamentos de autores latino-americanos, incluindo a compilação completa da obra jornalística de Gabriel García Márquez em diversos e extensos volumes pela Editora Record; e reedições de obras do jornalismo literário, como Na pior em Paris e Londres, de George Orwell, pela Companhia das Letras, editora já consagrada que reforçou investimentos em um novo formato e coloca no mercado livreiro títulos selecionados a dedo em edições econômicas, com o selo Companhia de Bolso.

Muitos destes novos livros de 2006 ganharam duplo destaque ou foram impulsionados pelo cinema, que parece ter sido e continuará sendo o melhor divulgador da literatura. Em 2006, a sétima arte resgatou até escritores norte-americanos da época da Depressão de 30, como Charles Bukowski (Factotum, com Matt Dillon) e John Fante (Pergunte ao Pó, com Collin Farrel e Salma Hayek). Muitos outros lançamentos são aguardados para este ano, como a adaptação de Anotações sobre um Escândalo, da escritora inglesa Zoë Heller, que traz Cate Blanchett como protagonista.

Por fim, pode se afirmar que 2006 manteve sua agenda agitada na área. Mas quatro escritores e respectivas obras parecem ter se sobressaído e destacado neste concorrido cenário. Alguns já consagrados, outros, novatos que prometem.

Obra premiada

A linguagem do escritor amazonense Milton Hatoum, como já disse no post "As gangorras de Hatoum", é simples, isenta de piruetas modernas ou arroubos intelectuais. Mas sua narrativa é tão intricada que facilmente nos prende com histórias sobre relações familiares complexas e repletas de sentimentos intensos, muitas vezes dúbios e contraditórios. Assim o é Dois irmãos (2001), relançado em formato de bolso no ano passado pela Companhia das Letras e ganhador do Prêmio Jabuti em 2001.

Mas Hatoum, admirador de Guimarães Rosa e Graciliano Ramos, parece ter se consagrado definitivamente em 2006, após ganhar seu terceiro Jabuti por Cinzas do Norte (2005), seu terceiro livro. O primeiro, Relato de um certo Oriente (1989), é separado por anos do segundo, mas premiado da mesma maneira, fenômeno que denota um certo perfeccionismo de seu autor, que definitivamente funcionou muito bem até agora.

O escritor já se destacaria apenas pela sua cidade de origem, na qual faz questão de contextualizar suas histórias, todas com fortes reminiscências autobiográficas: a cidade de Manaus. Pedaço de um Brasil esquecido, Hatoum torna um deleite o desbravar de uma região que traduz tão bem nossa pátria. E cria uma literatura que há tempos não se via no país, com mais recheio e menos forma.

Jornalismo romanceado

Neste ano, não é demais dizer que o jornalista e escritor norte-americano Truman Capote (1924-1984) reviveu. Tudo começou com um filme e indicações ao Oscar, seguidos por diversas reedições de uma obra marcante e polêmica, que revolucionou a linguagem jornalística e foi inspiração para outros escritores de um gênero que se denominou jornalismo literário ou novo jornalismo (new journalism), no qual muitos de seus autores escreviam para a antológica revista norte-americana The New Yorker.

O filme Capote retrata o período de apuração de A sangue frio (Cold Blood, 1966), obra-prima do autor. A atuação afetada de Philip Seymor Hoffman mereceu o Oscar por sua verossimilhança com o retratado. Truman é exatamente o que nos é colocado na tela, talvez pincelado com cores mais claras. A discussão da ética jornalística não tem lugar em sua obra, que insiste em ultrapassar limites até o ápice, em seu último livro, mas, ainda assim, fazer um jornalismo memorável e admirável, exaustivamente apurado e observador.

Após freqüentar a alta roda da sociedade, a decadência de Capote foi rápida e mortal, causada pela dependência do álcool e drogas. Morreu prematuramente após produzir Bonequinha de luxo (1958), sucesso cinematográfico com Audrey Hepburn, e Música para camaleões (1980), peça essencial para entender sua morte e desilusão com o sucesso. Ambos os livros foram reeditados pela Companhia das Letras. O autor ganhou ainda, pela editora, uma compilação de vinte contos de sua autoria, além de uma biografia pela Editora Globo. Além disso, A editora Alfaguara lança agora seu romance inédito: Travessia de verão.

Autor múltiplo


Quem viu Lourenço Mutarelli ao vivo em sua palestra na Flip 2006 e no filme Cheiro do ralo (2006), adaptação de sua primeira obra em prosa lançada em 2002 dirigida por Heitor Dhalia (Nina, 2004) e protagonizada por Selton Mello, não vê grandes mudanças. O escritor é quase um personagem e o personagem é quase o escritor. Com uma expressão facial desiludida, Lourenço gosta de reiterar que por vezes se sente envolvido pelas crises de pânico e depressão tal qual o protagonista de sua aclamada obra, um negociante de artigos usados incomodado cada vez mais com o cheiro do ralo de seu banheiro, o que tira sua razão em situações inusitadas.

Lourenço não é, na verdade, um novato. Ele já era conhecido no mundo dos quadrinhos por seus traços expressivos de nanquim. Lançou a primeira edição de sua arte em 1988 e se tornou referência em publicações independentes. São dele as ilustrações de Nina, que acabou gerando o livro Jesus Kid (2004), uma amostra de que a parceria com Dhalia e Selton rende frutos até hoje. Seu detetive, Diomedes, é estrela de uma trilogia começada em O dobro de cinco, passando por O rei do ponto até terminar em A soma de tudo.

Para completar seu sucesso em 2006, o filme Cheiro do ralo rendeu boas críticas e foi escolhido como melhor filme e ainda levou o Prêmio da Crítica na categoria nacional da 30ª Mostra de Cinema Internacional de São Paulo, além do prêmio do Júri Oficial e Popular do Festival do Rio. Seu mais novo livro, A caixa de areia (ou Eu era dois em meu quintal), lançado pela Devir Editora em janeiro, é uma autobiografia que mistura literatura e quadrinhos.

Peruano engajado


O jornalista e escritor Mario Vargas Llosa, do alto de seus 70 anos, foi uma agradável surpresa em 2006. Seu retorno cruzou o Atlântico pelas mãos da Alfaguara, editora espanhola criada nos anos 60 e que no ano passado desembarcou no país, já responsável por títulos como Quando fui outro, de Fernando Pessoa; Um retrato do artista quando jovem, de James Joyce, entre outros.

Autor distante da fantasia e existencialismo de autores latinos de sua época, como o próprio Márquez, em Travessuras da menina má ainda é possível encontrarmos resquícios da sua postura engajada e narrativa épica, veementes em obras-primas como Conversa na catedral (1969), belo retrato de um Peru sob o jugo da ditadura. Mas Travessuras é, acima de tudo, um livro sobre o amor em meio a utopias, como o Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR), ao longo de 40 anos. São encontros e desencontros de um casal por diversas cidades e países, como a revolucionária Paris dos anos 60.

Linha direta com o Oriente

Além destes autores, é impossível não citar a avalanche de títulos provenientes do Oriente Médio ou cuja temática se situa no ambiente da guerra, radicalismo e conflitos religiosos, tão cada vez mais complexa para o entendimento ocidental.

Primeiro, há dois best-sellers: o O livreiro de Cabul, relato da jornalista norueguesa Asne Seierstad sobre os três meses que viveu com uma família afegã, lançado pela Record; e O caçador de pipas, de Khaled Hosseini, traduzido pela editora Nova Fronteira, que terá em breve uma adaptação para o cinema facilmente encantadora, assim como Machuca (2004), já que trata da amizade de crianças em meio a grandes acontecimentos políticos, mais especificamente um Afeganistão invadido pela União Soviética no final dos anos 70.

Outro título extremamente delicado recentemente lançado pela Geração Editorial é Mulheres de Cabul, de Harriet Logan, ilustrado com belas fotos em preto e branco das mulheres afegãs, alvos fáceis de preconceitos e ideologias ocidentais. A imagem, longe de neutralizá-los, pelo menos os minimiza.
*publicado no Digestivo Cultural
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